Crónica | Alexandre Honrado – Da ilha da água onde se morre de sede

Não há muitos lugares onde a contradição seja tão marcada: o Sri Lanka é uma ilha robusta, verde e autêntica, onde a chuva é muito comum e a população parece viver numa paz interior que contagia, ouvindo-se a palavra Theravada1 em cada passo. Mas as contradições são evidentes: a abundância das chuvas não equivale à abundância de água potável e as populações sofrem grandes restrições. E a sua pacificidade é quebrada na mobilização permanente do exército que recebe ordens da capital, Colombo, e que, sobretudo, teme os (autodenominados) tigres Tamil, ou Tigres de Liberação do Tamil Eelam (uma organização política armada que pretende a autodeterminação do povo desse nome, mediante a criação, no nordeste da ilha do Sri Lanka, de um Estado independente. A campanha deu origem à Guerra Civil do Sri Lanka, um dos mais longos conflitos armados da história recente da Ásia e quase coincidente com em data com a tomada de poder dos khmers vermelhos no Camboja, de que resultou o assassinato de muitos monges budistas locais).

O Sri Lanka é, ao mesmo tempo, o único País da terra onde o Budísmo, depois de instituído, nunca deixou de vigorar. Ali, as antigas capitais do norte – Anuradhapura e Polonarua – que estão agora desertas e em ruínas, guardam muitos vestígios da devoção dos cingaleses. Mas a contemporaneidade mostra como essas ideias estão vivas – muitos naturais do Sri Lanka entram para a Sangha – comunidade budista de monges e monjas (estas mais raras na atualidade). Tal como entendemos da leitura de Buddhist Sociology, de Nandasena Ratnapala, o Budismo é aqui uma prática de vida, uma estrutura de crença – uma fé viva que molda a existência dos seus crentes, que ultrapassam, no território, 75 por cento da população.

Cândia é hoje considerada a cidade principal dos budistas cingaleses – e de muitos budistas do Mundo. Situa-se em plena região montanhosa central (zona que parece ser também o abrigo ideal dos esconderijos Tamil). Não longe, situa-se a presença colonial bem patente em construções luxuosas – como o Cinnamon Lodge Habarana, o hotel de cinco estrelas construído no coração da floresta e cujos quartos são individualmente as grandes vivendas dos colonizadores do século XIX. A não muitos quilómetros, a realidade não é a do turista rico: junto ao lago central da montanha, situam-se dois dos lugares mais sagrados do Mundo: o Dalada Maligava, o Templo do Dente2;e, na margem oposta, Malvata, o grande mosteiro central de Siyam Nikaya, que alberga o maior número de monges da ilha. Ali, os santuários são sumptuosos, muito coloridos e complexos – e todavia s monges vivem em retiros de grande simplicidade. Os turistas são recebidos em locais próprios – e a sua curiosidade maior é sempre obter esclarecimentos sobre a samsara – comummente, ciclos de morte e renascimento – e sobretudo a colocação de dúvidas sobre a experiência insatisfatória da vida e a capacidade – ou não – de alcançar uma nova vida, no renascimento,a reencarnação.

À entrada do mosteiro, destaca-se o grande arco de pedra: determina a separação entre o mundo secular (o da vida quotidiana) e o mundo sagrado do mosteiro. Um portão de pedra e uma roda esculpida, com oito raios, oito vias sagradas recomendadas para a obtenção da liberdade, ou melhor, da libertaçãoo das dores da vida do dia a dia. O centro da roda, explicam-nos, é o Nirvana. Em toda a linguagem presente – quando nos falam de meditação, de vacuidade, de luz como fim e objetivo, como paz eterna, só muito remotamente conseguimos transpor conceitos – e práticas para a nossa realidade.

Alexandre Honrado
Historiador

1 Theravada,  a via da dusciplina ou a Escola dos Anciãos. O caminho da auto-redenção. NA prática apenas os monges podem emular o exemplo de Buda – mestre e guia, não um deus – até ao Nirvana, e mesmo entre aqueles poucos o conseguirão nesta vida. Obviamente este trabalho não pretende desenvolver os conceitos do Budismo e as suas várias facetas.

2 Acredita-se guardar um dente do fundador Siddharta Gautma,

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